MANUEL JOÃO RAMOS
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​O Santuário do Cabo Espichel em risco

3/1/2021

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Picture(Foto: C.M.Sesimbra, 2019)
​Ocupados como andamos com tantas coisas importantíssimas e urgentíssimas, passou ao lado de muitos – ou de quase todos – portugueses a aprovação da Declaração dos ministros da cultura europeus no Fórum Económico Mundial de Davos, em Janeiro de 2018. Trata-se de um compromisso intergovernamental para a defesa da paisagem e do ambiente construído na Europa. Propugna uma visão holística na defesa de uma cultura construtiva sustentável e a centralidade das populações nos processos decisórios relacionados com qualquer intervenção humana no ambiente natural.
 
É um documento importante porque reconhece tacitamente que um dos três pilares fundamentais do Direito - o direito dos “comuns” – tem sido continuamente destratado pelos estados nacionais e pela União Europeia. Estamos habituados a distinguir direito público (o que regula as administrações estatais e a sua relação com os cidadãos) e direito privado (o que regula a vida de cidadãos e empresas), esquecendo as mais das vezes esse terceiro pilar que é o direito ancestral dos “comuns”. Desde a Idade Média que os “comuns” têm sido alvo da cobiça pública e privada, mas foi a revolução industrial que acelerou o desmantelamento dos bens comuns das comunidades locais, ao ponto de que hoje poucos entendem a sua vital relevância. Ora, esta fonte de direito é muito mais que apenas a regulação dos baldios. Projecta-se sobre o ambiente, a paisagem, a vida social, a cultura. Incide sobre bens tão essenciais como a água, o ar, a bioesfera, a alimentação e a habitação. E a Declaração de Davos vem, no fundo, reconhecê-lo.
 
Vem isto a propósito do modo como valores construídos têm, na Península de Setúbal, sido objecto de um processo predatório de privatização que arrasa tanto a centralidade da auscultação das populações como o reconhecimento de que nesses valores se inscrevem direitos que estão para além do alcance da divisão simplista entre público e privado. Alguns exemplos deste assalto: a projectada transformação do palácio dos Duques de Aveiro, em Vila Nogueira de Azeitão, em hotel de charme; a efectivada transformação do convento da Arrábida em centro de conferências (e retiro hoteleiro); a construção do empreendimento Mar da Califórnia, em Sesimbra, sobre terrenos do domínio público marítimo; e – agora – a futura transformação do Santuário no Cabo Espichel em empreendimento turístico.
 
É conhecida a história milenar do Santuário do Cabo Espichel e das práticas votivas nele centradas: antigo lugar de culto islâmico ou mozárabe, tornou-se com o avanço da cristianização um dos círios marianos mais importantes do país. É, não apenas um conjunto de edifícios e uma paisagem única, mas um património mental no qual se inscreve uma comunhão antiga entre as populações saloias a norte de Lisboa e as populações da península de Setúbal. O Santuário do Cabo Espichel é um exemplo perfeito da “cultura construtiva” que a Declaração de Davos vem defender: não é apenas um núcleo edificado histórico, uma paisagem preservada, mas uma ideia colectiva, um lastro milenar de práticas comunitárias. Estando à guarda do Estado – seja o governo central, seja o governo autárquico – não deve ser, ainda assim, considerado como um simples bem público que o Estado pode alienar, cedendo-o à iniciativa privada a seu bel-prazer. É, no entendimento holístico que Davos defende, um importantíssimo bem comum, em relação ao qual as populações, muito mais que ter uma palavra a dizer, deverão ter capacidade inequívoca de decisão.
 
Mas vá alguém dizer isto ao Ministério da Cultura (que assinou a Declaração de Davos) ou às vereações autárquicas de Sesimbra, de Setúbal, de Sintra e por aí fora. Evidentemente que a resposta seria, como é tradição, um pesado silêncio.
 
 Jornal de Azeitão, Dezembro 2020
 
 
 
 
 
 
 
 


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