Depois, foi a carrinha do pão. O papo-seco e o pão da Quinta do Anjo (ou era da Azóia?) chegavam pontualmente ao largo. As mulheres e, vá lá, um ou dois homens chegavam-se à carripana de saco na mão (era de pano, passou a ser de plástico) para levar a encomenda do dia para casa. Um dia, deixou de se lhe ouvir a buzina. Ainda chega, mas sem se fazer anunciar, ao largo da Piedade e algumas das mulheres ainda esperam por ela para comprar o pão no café-mercearia. E enquanto esperam, põem em dia mexericos e chocalhices: tal parece que vai um neto, tal foi ao centro de saúde com a maleita de sempre, tal zangou-se com o marido ontem à tardinha.
Depois, foram os raros moços de fretes que deixavam panfletos publicitários nas caixas de correio da aldeia. Eram os anúncios disto e daquilo, que por vezes ficavam amarelos do sol porque não eram recolhidos ou se arrastavam pelo asfalto a golpes de vento. Um dia, desapareceram os panfletos – à excepção, claro, dos cartões de visita dos angariadores das agências imobiliárias, à coca de tragédias familiares para almoedar casario à consideração de lisboetas endinheirados ou reformados franceses.
O carteiro ainda aparece uma vez por semana, agora montado numa motoreta em substituição da bicicleta, a deixar aqui e ali os envelopes da segurança social e da caixa geral de aposentações. Mas até quando?
Este ano, à conta do Covid, os voluntários da coletividade escusaram-se a tocar às campainhas e badalos das aldeias para pedir contribuições para a festa da Senhora da Conceição. Até porque nem se sabia se podia haver ou não festa. Talvez no próximo ano, se as coisas melhorarem. Talvez por MbWay, ou contactless card. Talvez a generosidade interesseira da Secil cubra os gastos e não seja preciso bater às portas que ainda se vão abrindo aqui e ali.
E depois veio a quarentena. O café-mercearia esteve meses fechado, e o negócio levou um grande rombo. Como abre às oito para servir a clientela feminina que precisa do pão e dos mais ingredientes para preparar almoços antes de se meter ao caminho do seu ofício, os tendeiros não puderam recorrer aos subsídios do estado – são os grandes que conseguem estender a mão e arrecadar as benesses; os pequenos são como o mexilhão que se lixa, preso entre a onda e a rocha. E depois ele há tantos clientes que já não querem frequentar o café porque há outros tantos que entram sem máscara e ainda não se desabituaram de falar alto e expelir reais ou imaginários miasmas. Os miúdos já não vêm jogar nos matraquilhos, os crescidos já não se interessam pelos prémios da caixa de furos. Para mais, o senhorio não quer renovar o aluguer e assim nem se pode pensar no trespasse. O comércio vai mesmo fechar no final do ano.
Vai mesmo fechar o único ponto de encontro das gentes das aldeias, o sítio onde as histórias são contadas e as novidades são repetidas, onde se ainda se pode tomar o café, a mini ou o bagaço, e gozar um momento de paz entre limpezas de terreno ou mudanças de pasto das ovelhas. Pouco importa, dirão os endinheirados lisboetas e os reformados franceses. Por nós, preferimos pegar no SUV e sentar-nos na esplanada da vila a empanturrar-nos de tortas e capuchinos. As compras, fazemo-las no super ou no híper, e de preferência via online com envio para a residência, que até dá descontos especiais.
Quanto aos cada vez mais idosos aldeãos, que perderam o direito ao peixe, ao pão e à convivência no sítio do costume, fiquem lá com as memórias do que a aldeia foi e de como morreu. Excluídos, marginalizados, esquecidos, a olhar desconfiados para o embonecrado caramanchão florido e sempre vazio de gente que a Junta mandou instalar ali no largo, para se convencer a si própria de que fez qualquer coisa pela terra. Ah, sim, é verdade: o caramanchão é um bom postal turístico para seduzir endinheirados lisboetas e reformados franceses a comprar o que resta do casario por “restaurar”.
Jornal de Azeitão, Setembro 2020